Wednesday, 3 June 2009
O homem da gaiola prateada
O enorme Mercedes Benz atravessa as faixas a toda a velocidade e trava impetuosamente, mesmo em frente à minha CN. Estava a controlar os seus movimentos pelos espelhos, e tinha já abrandado, pelo que aquela paragem não chegou a ser tão perigosa como poderia ter sido.
"Lá vamos nós outra vez..." pensei para com os meus botões. Nos últimos tempos pareço atrair episódios de "road rage" de cada vez que me faço à estrada. Há menos de dois meses, acabei o dia num esquálido posto da PSP, depois de um condutor me ter tentado atirar ao chão, por várias vezes, no meu percurso para casa. O meu crime de lesa-vaca-sagrada foi ter buzinado para avisar este senhor que ele estava a fazer marcha a trás para cima de mim.
Desta vez, no entanto, a culpa era minha. Momentos antes estava a tentar furar uma fila de carros pouco cooperantes, na marginal, quando inadvertidamente dei um pequeno toque no espelho de um imponente carrão de cor prata. Medindo o impacto mentalmente, achei que não valia a pena parar. Admito que o facto de se tratar de uma viatura de tantos milhares de euros também pesou na decisão, não por temer o valor que tivesse que pagar por um eventual estrago, mas porque nutro um certo desprezo por quem possui tais artefactos num país tão pobre e injusto como o nosso.
Talvez o estimado leitor considere desde logo incorrecto que se ultrapasse e circule de scooter entre veículos imobilizados. Se for esse o caso, tenho pena de si. É verdade que é ilegal, mas votar também o era, não há muito tempo atrás. Se o português é comodista e insiste em ir a todo o lado sozinho na sua intocável gaiola-sagrada, entupindo e poluindo tudo à sua passagem, eu sou obrigado a esperar também? Não me parece.
No entanto, eu sou a minoria. Por todo o lado sou relembrado desse facto. Até pelos meus próprios amigos. Sou também extremamente vulnerável encima de uma scooter, no meio de maníacos protegidos na sua armadura de lata. Poucos facilitam a passagem. Parecem querem condenar todos à tortura diária que escolheram para si próprios. Alguns chegam mesmo a fechar a passagem, atirando o carro para cima de mim. Parecem acreditar que isso é uma forma de justiça. Se eles esperam, todos têm que esperar. E se eu acabar debaixo do carro, a culpa será certamente minha, já se sabe como as motos são perigosas, não é?
O pequeno homem sai do carro, furibundo. Diz que eu lhe bati e fugi, que devo ser parvo, que sou uma besta. Gesticula, está histérico, descontrolado. Eu estou muito calmo, "vamos lá ver o estrago" convido, ignorando a forma como aquele senhor de baixa estatura se estava a expressar. Olhamos para o espelho e não vemos absolutamente nenhum dano. Nada. Se eu já o esperava, ele parece surpreendido. Em vez de tomar conforto neste facto, parece ficar ainda mais agitado. Agora diz que tenho "merda na cabeça" e que vai atirar o carro para cima de mim. Sim, é isso, vai atirar o carro para cima de mim. Diz que os ricos podem tudo e ri histericamente. Permaneço em silencio. O pequeno homenzinho usa um casaco de malha e uns óculos de aros redondos, parecendo ainda mais frágil. Podia acalma-lo com alguma violência física. A ideia ocorreu-me. Mas para quê? "Homem, vá-se embora" acabo por dizer. E no meio de mais ameaças, vou-me eu embora. Ele salta para o carro e persegue-me por alguns quilómetros. Depois desiste.
Se lhe ocorreu porque não tenho escrito nada ultimamente neste blog, esta é a resposta: o que tenho para contar é tudo tão negativo, tão triste, que prefiro não o fazer. Nesta sociedade de 5,5 milhões de sagrados automóveis e mais alguns de pessoas ignorantes e preconceituosas, é difícil andar fora do rebanho. Esperando que nem todos tenham a minha experiência, e não querendo assustar ninguém que esteja a pensar fazer-se à estrada numa scooter, eu fico por aqui.
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