Thursday, 4 October 2007

500 km de Scoopy (2ª Parte)

Éramos practicamente os únicos ocupantes do parque de campismo, e mesmo as poucas outras pessoas que víamos tinham o estranho hábito de desaparecer rapidamente. Um dia vimos uma tenda a ser erguida de manhã e de tarde já lá não estava... E de noite o ambiente era ainda mais estranho, o parque deserto, a nossa pequena tenda sozinha no meio das árvores... A verdade é que normalmente estávamos tão cansados que não perdíamos o sono com estas questões.

Os dias foram ocupados com passeios a Martinxel, Abrantes, Tomar e arredores. As estradas locais eram razoáveis e os condutores pareciam menos stressados e mais atentos que os habituais enlatados da capital. Por norma as ultrapassagens eram feitas respeitando as distâncias de segurança e, embora também circulassem demasiado depressa, pareciam mais atentos às particularidades de um motociclo. De resto havia uma maior consciência geral em relação às duas rodas. Vimos, por exemplo, vários locais de estacionamento para motociclos, coisa que em Lisboa é actualmente pouco mais que um mito.

Nas estradas secundárias, a Scoopy, aligeirada da sua carga, não tinha problemas em manter um ritmo confortável. Só nos sentimos mais tensos quando tivemos de utilizar estradas com muito trânsito, em redor de Abrantes, por exemplo. Mas normalmente era um prazer circular tranquilamente, apreciar a paisagem e descontraír. Estava um pouco receoso de andar de noite, mas em alguns dias isso foi mesmo inevitável e fomos brindados por uma iluminação perfeitamente capaz. Não me esqueço de uma viagem de regresso de Constância, depois de um jantar no único restaurante local ainda aberto. Era uma noite sem Lua e entre nós e os sacos-cama quentes e macios (na tenda!) estavam uns quilómetros de estrada recheada de curvas apertadas, temperadas com repentinas subidas e descidas... Um carrocel de adrenalina para a malta das RRs sem dúvida, mas eu estava mais preocupado em saber se conseguiria sequer ver alguma coisa. Esse problema posto de parte (a iluminação da SH parece a de um automóvel) a condução não deixava de ser extremamente exigente. Fiz aquele caminho várias outras vezes e nunca consegui sentir, em nenhum momento, que tinha tudo sobre controle. Acho que tenho que lá voltar.


Os nossos dias de férias passaram depressa, aquelas jornadas de passeios estavam prestes a terminar. Voltávamos com as memórias, como a da senhora octogenária que vendia frutos secos à beira da estrada e nos confidenciou que também ela era motociclista, ou a perene imagem do paredão iluminado da Barragem, das construções monumentais de Tomar, do jardim em Abrantes com o seu velho e venerável corvo negro, a loja de bicicletas onde comprei um capacete integral, os voluptuosos jantares no Ti Coimbra... Era enfim tempo de voltar, e já suspirávamos só de pensar na Lisboa poluída, habitada por demasiada gente medicada ou com uma urgente necessidade de o ser.

Fizemos paragem no Castelo de Almourol, para mais uma vez admirar aquela construção saída de um conto de fadas. Depois demorámo-nos no Entrocamento e quase sem darmos por isso estávamos às portas da capital. Parámos numa bomba de gasolina para nos prepararmos para o que estava para vir. O vento tinha-nos acompanhado mais uma vez todo o caminho e o seu efeito acentuava-se agora que estávamos na planície. O trânsito era muito intenso e a famigerada Recta do Cabo não estava muito longe. Desta vez eu tinha um capacete integral, mas fora isso a nossa situação não tinha melhorado muito: Continuávamos à mercê do vento lateral, e era por isso impossível circular a mais de 70-75 km/h. A SH estava capaz de fornecer um pouco mais de velocidade de ponta, mas o vento tornava tal prática num eventual suicídio. Os modos dos camionistas e motoristas também não tinham melhorado. Estava toda a gente demasiado excitada e apressada para reparar que faziam as ultrapassagens dentro da nossa faixa, por vezes tão perto que eu temia que a propria oscilação provocada pelo vento originasse uma colisão. Por diversas vezes buzinei para evitar o choque, mas isso parecia só motivar gestos agressivos, quando não absoluta indeferença. Fomos inclusivamente ultrapassados por um pesado, que assim que se viu apretado por alguém que vinha em sentido contrário, atirou com a enorme caixa de carga para cima de nós. Esta estava à altura dos meus olhos e gelei quando a vi a aproximar-se, tive literalmente que me desviar para salvar a cabeça, quase invadindo a berma.

O mais revoltante era saber que a velocidade máxima permitida em quase todo o percurso era 80 km/h e nós estavamos quase a atingi-la. Os camionistas circulavam alarvemente a mais de cem e os ligeiros à velocidade que conseguissem. Todos faziam as ultrapassagens “suicídas” que tornaram os portugueses famosos por esse mundo fora. Quase a chegar à ponte de Vila Franca, em que surgem duas faixas para o sentido em que seguíamos, tínhamos um enorme TIR a morder-nos os calcanhares. Já só lhe via a grelha no retrovisor e ouvia um rugido enorme enquanto a pesada máquina balançava de um lado para o outro, impaciente por nos ultrapassar. A pressão era tal que cheguei a pensar em desistir, abdicar do meu direito de utilizar a via e circular pela berma, pelo menos até chegar à ponte. Mas a berma estava em muito mau estado e cheia de detritos vários, pelo que depressa esqueci a ideia e voltei a concentrar-me na condução. Os metros iam passando e acumulando, e nós ainda ali estávamos. A Ponte cada vez mais perto. A determinada altura o camião atrás de nós parece ter desistido da ultrapassagem e parou com seu bailado infernal, resignado a não nos passar. Pobre coitado, deve ter chegado 25 segundos mais tarde ao destino, por nossa causa.

Apanhei a saída para Vila Franca e fomos dar com o engarrafamento da hora de ponta local. Estava ainda a assimilar a informação de ter saído daquela tortura e dei por mim a entrar na cidade aos gritos: “Estou vivo!” dizia gesticulando energicamente para os incrédulos enlatados, imobilizados no trânsito. “Estou vivo!! Ainda estou vivo seus #$%@#»&!!!”

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